06/05/2009 VALOR ECONÔMICO
O panorama econômico internacional continua sombrio, mas não podemos furtar-nos de pensar como será o mundo quando sairmos da atual crise. O essencial é identificar forças que condicionam o curso dos acontecimentos para, sobretudo, mudar a ordem vigente e evitar que voltemos a esse mesmo ponto no futuro.
A crise começou num segmento específico da economia americana e se propagou numa velocidade espantosa movida pela contração no crédito, com um impacto brutal nas trocas internacionais que segundo o FMI e OMC cairão entre 2% a 9% este ano. Se confirmado, será o pior desempenho do comércio desde a Segunda Guerra Mundial.
Prever o passo seguinte não é tão simples quanto parece. É improvável que ocorra uma forte reação de demanda por commodities no curto prazo; mas não é seguro que as cotações, especialmente as agrícolas, continuem a declinar. As raízes da incerteza são as mesmas que alimentaram o ciclo recente de alta especulativa. Ou seja, a distorção gerada pela influência das finanças desreguladas no sistema de formação de preços de commodities, seja para cima, seja para baixo.
Impulsos autônomos podem desmontar a 'coerência recessiva' dos preços dos alimentos de uma hora para outra. Modelos econométricos, como se sabe, orientam fundos hedge a acionarem ordens de compra de contratos de commodities cada vez que o dólar se enfraquece e há indícios de que os preços possam subir, como as secas no sul do Brasil e na Argentina, que tornam mais escassa a oferta.
A China, cujas reservas em dólar passam de US$ 1,9 trilhão, tem externado preocupações com o valor da moeda americana no futuro. Recentemente, o presidente do Banco Central chinês, Zhou Xiauchuan, defendeu a criação de uma nova moeda de referência de valor - uma espécie de 'bancor' já sugerido por Keynes em 1944 e então, como agora, vetado pelo poder financeiro americano.
O que une Xiauchuan a Keynes é a percepção de que uma mesma moeda não pode ser nacional e internacional ao mesmo tempo, sob risco de subordinar o mundo às conveniências de um poder emissor unilateral. Quem paga o preço mais caro pela ambiguidade da atual crise são as populações pobres, mais vulneráveis a um eventual cardápio de recessão com inflação de preços, potencializado pelos desequilíbrios monetários acumulados no sistema econômico americano.
Evitar a repetição desse tsunami silencioso implica em promover mudanças profundas na ordem estabelecida, como afirmou Enrique Iglesias, da Secretaria Geral Ibero-americano, na reunião de Governadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), realizada em março de 2009 na Colômbia.
Uma nova geografia política emerge da crise e é preciso escutar algumas vozes da antiga periferia do mundo. Nesse sentido, a reunião recente do G-20 deve ser saudada como um ponto de luz numa espiral sombria de incertezas e pânico. Estamos longe ainda de um Bretton Woods do Século XXI; os cifrões anunciados em Londres não encerram, tampouco, a determinação desejável de um Plano Marshall para reerguer as ruínas do nosso tempo.
Mas a incorporação de nações como África do Sul, Argentina, Brasil, China, Índia e México à nova governança mundial, com voz e poder de decisão, pode ter registrado em Londres seu ponto de mutação. Não é tudo, mas é um passo indispensável ao surgimento de uma verdadeira ordem multipolar. Dela depende a institucionalização de controles econômico-financeiros na esfera global. Não se trata de volta ao passado. Tampouco da mera reprodução na morfologia planetária das referências nacionais. Trata-se, sim, de erguer e legitimar novas formas de coordenação política sobre a montanha desordenada de escombros, escancarada pelo colapso do vale-tudo financeiro.
A nova arquitetura mundial precisa, ademais, pactuar alguma forma de controle sobre instituições não-financeiras, responsáveis por uma parte significativa dos "ativos tóxicos" causadores desta crise. Da mesma forma, o comércio entre as nações reclama salvaguardas contra o protecionismo dos países ricos. Somente assim poderá cumprir, de fato, sua promessa de alavanca do desenvolvimento na vida das populações mais pobres.
Nada disso se fará, porém, sem que a nova ordem multipolar resulte de uma articulação entre Estados democráticos que protejam e ampliem o repertório das conquistas civilizatórias que marcaram o Século XX. Entre elas, a promoção e a consolidação da democracia, o fortalecimento dos sistemas de proteção social e o combate à desigualdade.
A regressão verificada nos últimos anos resultou, em boa parte, do estilhaçamento de instituições, conquistas e regulações nacionais, submetidas a um processo deliberado de desmonte, em grande parte exercido de fora para dentro, a partir da supremacia unilateral dos mercados financeiros desregulados. A inadequação do sistema de governança daí resultante demonstrou vertiginosa transparência nesta crise. O desastre, no entanto, ainda carece de consenso retificador, do qual Londres pode ter sido semente de futuro.
Identificar os pontos em que o caminho se estrangula e a esperança derrapa é um passo importante na ampliação dessa avenida. Já não basta medicar os sintomas de uma desordem e voltar às suas raízes.
Se quisermos criar uma ordem econômica sustentável para o Século XXI, devemos ir além do que existia no passado. Para isso, ela precisa ser baseada no protocolo que forma o consenso mais amplo e legítimo já alcançado pela sociedade, os direitos humanos - e o compromisso de remover os muros que impedem seu acesso por todos. Tudo deve ser incorporado à agenda do desenvolvimento e das instituições multipolares, velhas e novas, em especial o direito à alimentação adequada, parte fundamental do direito à vida consagrado na Declaração Universal de 1948.
E é por constatar que, na atual crise, mais uma vez recrudescem as ameaças a esse direito que a FAO está propondo uma nova Cúpula Mundial da Alimentação para novembro de 2009. Sua pertinência se projeta da economia para a própria biologia. Se a superação dos impasses atuais remete a uma longa jornada de reconstrução mundial, devemos antecipar algum consenso sobre aquela urgência que não pode esperar: a fome. Erradicá-la é o passaporte para ingressarmos, de fato, numa nova ordem que fundamente o novo século.
José Graziano da Silva é representante da FAO para América Latina e Caribe.