13/12/2010 O ESTADO DE SÃO PAULO
O governo Lula começou comprometido com a geração de elevados superávits primários, mas chega ao fim com enorme afrouxamento fiscal e com perda de transparência na sua execução. Cresceram os gastos primários, que excluem o pagamento de juros sobre a dívida e, depois de descontados os artifícios que inflaram as receitas, descobrimos que o superávit primário encolheu. Na metade de 2005, as despesas primárias do governo central atingiam menos de 16% do PIB, mas em 2010 já atingiam 18,5% do PIB, mesmo descontado o acréscimo de gastos provocado pela capitalização da Petrobrás.
O governo também abusou da expansão do crédito por parte das instituições financeiras oficiais. Sem contar com recursos orçamentários, o Tesouro elevou a dívida pública e, somente em 2010, transferiu mais de 7% do PIB às instituições financeiras oficiais, notadamente o BNDES, abatendo da dívida bruta os créditos contra essas instituições como se eles fossem ativos líquidos, mantendo artificialmente inalterada a dívida líquida.
O novo governo sinaliza que abandonará a expansão fiscal e os artifícios que escondem a verdadeira magnitude do superávit primário. Para dimensionar essa austeridade, o governo terá de olhar para três objetivos da política fiscal. O primeiro é contribuir para desaquecer a demanda doméstica aliviando parcialmente o peso imposto à política monetária. Com a inflação em crescimento, e diante da abundância de ingressos de capitais que vêm valorizando o real, a melhor combinação de políticas fiscal e monetária é com um corte sensível de gastos públicos, abrindo espaço para uma maior acomodação monetária.
Contudo, não basta a "promessa" de que os gastos serão cortados para obter do Banco Central a "recompensa" de uma elevação menor da taxa de juros. Se a "promessa" de cortar os gastos induzisse o Banco Central a elevá-la temporariamente abaixo do necessário, no futuro a elevação da taxa de juros seria ainda maior.
O segundo objetivo é acentuar a tendência declinante da dívida pública líquida em relação ao PIB. Nos últimos anos, a preocupação com a sustentabilidade da dívida pública caiu. Isso se deve menos ao declínio do tamanho da dívida, que ainda é muito grande, e mais à sua "desdolarização", que truncou a ligação entre o estoque da dívida e o câmbio real. Depois da "desdolarização", a trajetória da dívida líquida passou a depender apenas de dois parâmetros - a taxa de crescimento do PIB e a taxa real de juros - e de um instrumento de política econômica - o superávit primário.
É importante essa distinção entre os parâmetros (ou os "dados do problema"), de um lado, e o "instrumento de política econômica", de outro. O governo não pode partir da hipótese de que atingirá uma taxa de crescimento econômico superior à permitida pelas taxas factíveis de investimento, nem pode artificialmente reduzir a taxa real de juros. O único caminho para levar a uma queda da relação dívida/PIB é gerando superávits primários suficientemente elevados.
Mas será que é isso que as autoridades pretendem? Há sinais de que o governo teria a preferência por uma queda da relação dívida/PIB gerada pela aceleração do crescimento do PIB para a faixa de 5% a 5,5% ao ano, o que reduziria a necessidade de cortar gastos e de elevar o superávit primário. Nesse caso, seriam menores as "lágrimas" no caminho da redução da dívida pública para 30% do PIB ao final do governo. E as lágrimas seriam ainda menores caso fosse possível provocar a queda contínua da taxa real de juros, que seria usada mais para reduzir o custo da dívida do que para reduzir a inflação.
A história econômica mostra que as inflações não ocorrem por geração espontânea, e que a taxa de juros é o principal instrumento usado no seu controle. Por isso, não há como comprometer-se com uma trajetória pré-fixada de queda da taxa real de juros. Por outro lado, embora atualmente no Brasil seja possível obter por algum tempo taxas de crescimento econômico de 5% ou de 5,5% ao ano, essas taxas somente poderão ser sustentadas por períodos mais longos caso ocorram alterações profundas na política fiscal que elevem as poupanças totais domésticas.
A razão para isso é simples, e aqui temos o terceiro objetivo a ser perseguido pela "nova" política fiscal. No Brasil as poupanças domésticas são baixas, e a elevação das taxas de investimento requer a complementação das poupanças externas, que são absorvidas através de um aumento nas importações líquidas, o que significa um aumento no déficit nas contas correntes. O Brasil sempre foi dependente da absorção de poupanças externas para financiar os investimentos, mas essa dependência se elevou depois de 1994.
Para mostrar esse ponto, elaboramos o gráfico ao lado com base nos dados anuais das contas nacionais. No período entre 1970 e 1993, os pares de pontos entre investimentos (no eixo vertical) e importações líquidas (no eixo horizontal) se aglomeram em torno da reta mais elevada, e no período entre 1994 e 2010 os pares de pontos se aglomeram em torno da reta mais baixa.
A queda da poupança doméstica explica esse deslocamento. Entre 1970 e 1993, as poupanças públicas eram mais elevadas, e o consumo das famílias era menor, elevando as poupanças privadas. Com as poupanças que ocorriam entre 1970 e 1993, uma taxa de investimentos de 26% do PIB gerava, apenas, uma importação líquida de 2% do PIB. Já no período de 1993 a 2010 precisamos de uma importação líquida de 6% do PIB para financiar uma taxa de investimentos de apenas 18% do PIB.
Dadas as taxas de crescimento da população em idade ativa e da produtividade total dos fatores, taxas de investimento de 18% do PIB levam a taxas de crescimento de 4,5% ao ano no Brasil. Com taxas de investimento de 25% do PIB, chegaríamos a taxas de crescimento de 5,5% ao ano. Por que não poderíamos chegar a essas taxas de crescimento? A resposta é simples: elas demandariam níveis de importações líquidas que, mesmo diante dos enormes ganhos de relações de troca ocorridos nos últimos anos, nos deixariam com déficits não sustentáveis nas contas correntes.
A lição extraída deste exercício é simples. Para elevar a taxa sustentável de crescimento econômico, não basta apenas cortar os gastos públicos e elevar os superávits primários. É preciso mudar a composição dos gastos, reduzindo a proporção de gastos de consumo do governo e elevando a proporção de gastos em investimento. É desta forma que a poupança do setor público poderá ser elevada, reduzindo a dependência brasileira com relação à absorção de poupanças externas. Conclui-se que, para almejar taxas de crescimento entre 5% e 5,5% ao ano, é preciso que haja uma profunda mudança na política fiscal, que vai muito além de meras promessas de superávits para o próximo ano.