08/01/2010 VALOR ECONÔMICO
Armando Castelar Pinheiro
O ano começa com uma considerável dose de otimismo, aqui e lá fora. Com a atividade em alta, baixa inflação, a situação dos bancos aparentemente sob controle e os mercados de dívida e ações novamente em ebulição, se generaliza a percepção de que a crise não foi, afinal, tão diferente das anteriores, no sentido de que, após o choque inicial e as respostas de política econômica, a economia está voltando com rapidez ao seu patamar anterior. Nesse quadro, a direção mais ou menos universal de recuperação tem pesado mais do que as disparidades que persistem entre os países. Assim, as economias são vistas como em distintos estágios de um mesmo processo de retomada, liderado pela Ásia, em especial China e Índia, vindo em seguida a maioria dos países em desenvolvimento e, no fim, os EUA, a área do Euro e o Japão. Mantida essa tendência, já em 2011, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o desempenho relativo dos países em desenvolvimento e desenvolvidos terá retornado ao padrão pré-crise, o mesmo ocorrendo com o crescimento do PIB mundial.
Por trás desse otimismo de consumidores, empresários e investidores está uma renovada confiança nas autoridades e a convicção de que a política econômica tem antídotos suficientes contra novos choques, garantindo a continuidade da atual recuperação. Tanto internacional como domesticamente, porém, há fatores que podem causar, senão uma completa frustração, pelo menos turbulências nesse cenário. Ironicamente, alguns desses riscos se relacionam, pelo menos em parte, com os instrumentos de política econômica utilizados no enfrentamento da crise.
Lá fora, os desafios principais serão o manejo das políticas de estímulo à demanda doméstica e a situação das contas e da dívida pública. O desafio fiscal se relaciona ao papel do setor público em facilitar a desalavancagem de bancos, famílias e empresas e evitar uma queda ainda maior da demanda agregada, num contexto em que o consumo e o investimento privado colapsaram, conforme as fontes de financiamento secavam, muita riqueza desaparecia e o desemprego subia.
Assim, a contração da demanda privada encontrou sua imagem especular na alta do déficit público, não só por conta dos programas discricionários de gastos e isenções, mas também pela queda das receitas tributárias, reflexo da redução da renda e do gasto privado. Não por outra razão, os países que maiores booms de consumo e bolhas de ativos registraram, como Espanha, Irlanda, EUA e Reino Unido, também estão entre os com maior deterioração das contas fiscais.
Esses déficits têm um impacto direto sobre a dívida, cujo atual ritmo de expansão é insustentável. Isso significa que os programas de estímulo fiscal não podem ser mantidos por muito tempo; por outro lado, o seu fim terá um impacto negativo importante sobre a economia. Infelizmente, será tão mais custoso mantê-los quanto mais necessários esses forem, o que aumenta a chance de cenários polares para a situação fiscal: em um, a demanda privada se recupera com rapidez, a receita tributária sobe, o déficit diminui e os programas de estímulo são descontinuados; em outro, o oposto se dá e a dívida cresce rapidamente. Quanto mais esta subir, maior a necessidade de aumentar os impostos no futuro e menor o potencial de crescimento, o que tornará o processo de ajuste fiscal mais doloroso.
Na área monetária, as autoridades enfrentam um dilema semelhante. Caso se precipitem em elevar os juros básicos, podem enfraquecer a demanda privada antes que essa tenha se recuperado o suficiente, recolocando a economia numa trajetória recessiva. Se demorarem demais para apertar a política monetária, os juros de longo prazo vão subir, com a expectativa de mais inflação e de o Banco Central precisar aumentar mais os juros no futuro, para trazer a inflação de volta à meta.
A alta dos juros longos trará prejuízos consideráveis aos bancos, crescentemente carregados desse tipo de papel, e elevará o custo das hipotecas, o que também refreará o crescimento. Para evitar esse resultado, as autoridades monetárias podem optar por manter os programas de compra de títulos de dívida, que em princípio serão descontinuados no primeiro semestre de 2010. Isso aumentaria o risco de bolhas e tornaria mais custoso reverter essa política no futuro.
É razoável esperar, portanto, que o mercado de dívida soberana, cujos níveis de emissão são recordes (US$ 12 trilhões em 2009), ofereçam riscos importantes em 2010. O exemplo da Grécia ilustra os problemas que podem ocorrer. Especialmente com as agências de classificação de risco mais conservadoras, num esforço para recompor sua reputação, a possibilidade de rebaixamento na classificação de risco de países com dívidas e déficits públicos elevados é grande. Isso poderia colocar esses países numa situação crítica, de precisar conviver com um quadro recessivo por um longo tempo, aumentando o risco político de ruptura. A recusa do presidente da Islândia em assinar o acordo de pagamento de dívida com os governos inglês e holandês esta semana ilustra a natureza desse risco. Seu impacto sobre a economia mundial será pequeno enquanto se tratar de Grécia e Islândia, mas pode ser dramático se os problemas ocorrerem em economias maiores.
No Brasil, o risco maior é de natureza política. Uma face do problema estará na gestão da política econômica, especialmente, mas não só, na área macroeconômica. Em particular, pela possibilidade de um aquecimento da demanda doméstica muito além do sustentável no longo prazo, o que resultaria em pressões inflacionárias e numa grande alta no déficit externo; nos dois casos, sinalizando a necessidade de ajustes fortes e mais volatilidade no futuro. Isso será especialmente ruim se vier associado, como em 2009, a um comprometimento permanente com novas despesas correntes. A outra face desse risco vai estar no debate eleitoral e nas propostas de política econômica para a próxima administração. Caso essas coloquem em dúvida a manutenção do tripé metas de inflação, razão dívida pública / PIB estável e câmbio flutuante, o mercado reagirá e o ano pode ser menos tranquilo do que parece visto de hoje.
Armando Castelar Pinheiro, analista da Gávea Investimentos, é professor do IE/UFRJ. Escreve mensalmente às sextas- feiras.