21/01/2021 Agitra via Valor Economico
Se Biden for bem sucedido, poderá resgatar a confiança dos EUA (e do Ocidente) no seu modelo político e econômico. Se ele fracassar, o modelo autocrático chinês parecerá cada vez mais um destino
Por Janan Ganesh — Financial Times
A atual militarização de Washington é um presente para a propaganda de autocratas pelo mundo. É nisso, dirão eles, que dá seguir o liberalismo: desordem civil; um Estado sitiado. O mais triste sobre exibição de força é que ela provavelmente é justificada. Não que os autoritários do mundo precisassem de um empurrão para se fortalecer. Novos dados mostram que a economia da China fez mais do que apenas evitar uma recessão em 2020. Suas vacinas contra a covid-19 têm alta demanda pelo mundo. Pequim assinou um acordo de investimentos com a União Europeia, o que expôs uma ruptura no Ocidente quanto à superpotência emergente.
Esse é o mundo com o qual Joe Biden se confrontará ao assumir hoje. Desde 1945, quando Harry Truman sentiu o peso da “lua, das estrelas e de todos os planetas”, não havia tanto em jogo nas mãos de um novo presidente dos EUA. Joe Biden, 46º presidente dos EUA Principais momentos da campanha do democrata até a Casa Branca Se ele governar bem, conseguindo consertar a economia, distribuir vacinas e acalmar o front doméstico, poderá estancar a lenta deterioração da credibilidade dos EUA (e, por extensão, do Ocidente). O que começou com as “guerras perpétuas” dos EUA, e se agravou com a crise financeira de 2008, atingiu uma apoteose negativa com a pandemia. O Ocidente precisa de uma história de sucesso para melhorar seu próprio moral e sua reputação externa. Se Biden fracassar, a percepção quanto à força da China passará de algo ainda incerto para quase um destino. Países cujos sistemas flertam entre a democracia e o absolutismo poderiam começar a ver essa segunda como a opção mais forte deste século.
Nos EUA, o terreno estará fértil para um retorno populista - com um Donald Trump mais forte - na eleição de 2024, com tudo o que isso implica para a paz interna e a civilidade mundial. Os leitores têm direito a bocejar quando cada Presidência é apontada como um momento decisivo para o mundo. Olhando em retrospecto, talvez não importava muito se George H. W. Bush ou Bill Clinton tivessem vencido a eleição de 1992. A década não exigiu feitos de estadistas, a não ser lidar com as sensibilidades da Rússia pós-Guerra Fria.
Os EUA tinham crédito moral de sobra e total supremacia. Mas se a badalação com governos passados foi exagerada, seria um erro subestimar a situação atual. Se no futuro olharmos para o século 21 e o virmos como o momento do eclipse do Ocidente ou então só como uma má fase passageira, isso dependerá em grande parte do desempenho de Biden. Um homem cujo principal argumento de propaganda foi o fato de ser uma pessoa comum terá de ir além disso. Seus programas expansionistas de ajuda fiscal e de controle da pandemia indicam que ele compreende isso.
Mas são só programas. Ele, e a democracia liberal serão julgados num aspecto que se mostrou elusivo nas últimas duas décadas: competência. Para piorar ainda mais a situação herdada, Biden assume o comando dos EUA na fase mais estranha do ciclo de vida de uma superpotência. Sua força relativa diminuiu, mas não a ponto de trazer à tona, nem remotamente, outro líder para o mundo livre. Sua vida doméstica ainda é, num grau francamente estranho, o centro dos olhares do planeta (daí os protestos em Paris contra uma morte provocada por policiais em Mineápolis).
Seus erros se tornam os erros de todo o liberalismo, ao menos na “agitprop” do mundo autocrático. No passado, a compensação aos EUA por esse fardo era um volume de proporcional de poder. Hoje há um incômodo desequilíbrio entre o fardo e o benefício. Nesse sentido, talvez nem 1945 faça justiça às provações que aguardam Biden. Por mais intimidado que Truman possa ter se sentido, os EUA eram a força que chegava, além de também serem uma força coerente internamente. Ele estava trabalhando com a maré histórica a favor dos vencedores.
Décadas depois, os EUA têm uma proporção menor da produção mundial e consideram uma transição presidencial pacífica como um feito. Uma grande maioria dos republicanos na Câmara dos Deputados votou por não certificar a eleição de Biden, mesmo depois da invasão do Congresso dos EUA. Como regra prática, uma democracia está be quando questões de diferenças políticas não são tão relevantes.
De forma ideal, a consequência de um novo presidente deveria ser um sistema público de saúde um pouco melhor ou um pouco pior. O alcance de Biden não é nada menos do que a sustentação do bom nome do liberalismo ou a continuidade de suas mazelas, até que se depare com seu destino. Esta Presidência traz um clima no ar de “última chance”.